Não há maior clichê do que comparar eleição a uma guerra. Cada candidato tem suas armas, conhece seus pontos fortes e fracos, estuda os pontos fortes e fracos dos adversários – e, a partir daí, define uma estratégia. Repetir a comparação no pleito presidencial de 2014 tem uma utilidade: mostrar a mesma situação de sempre em seu modo superlativo. A eleição desta vez tem um considerável potencial sangrento. Será luta de espadas e baionetas, com ventres dilacerados, cabeças cortadas e sangue jorrando sobre lama, muita lama. Sim, pois a principal novidade da batalha eleitoral de 2014 é o terreno imprevisível e movediço onde se dará a luta. Os candidatos se baterão com um ator novo durante a campanha eleitoral: o povo na rua, em manifestações que podem ser pacíficas ou violentas. Outro fator inédito é a Copa do Mundo no Brasil, que eleva ao infinito os danos de um fiasco na organização (para não falar de uma derrota da seleção, para quem acredita no efeito “Pra frente, Brasil!”). Além de definir suas estratégias cuidadosamente, os candidatos terão de se mover com cuidado no teatro de guerra das eleições de 2014. Um descuido, e é fácil pisar numa mina – e os adversários comemorarão a imagem do candidato, em pedaços, voando pelos ares.
Outro fator de desequilíbrio na campanha de 2014 será o condomínio formado por Eduardo Campos e Marina Silva. Eles entram para dar emoção à disputa, que já ficava enfadonha, entre PT e PSDB. Acostumado a derrotar o PSDB com um roteiro pronto, o PT se arma com uma equipe especializada em jogar pesado nas redes sociais – com um nível de deslealdade que pode ser comparado ao uso de armas químicas. O PSDB terá, pela primeira vez, apoio de uma parte significativa do movimento sindical – um tradicional aliado petista, agora em versão “quinta coluna”. Mas nenhum deles tem a fórmula para combater um candidato que carrega as benesses de aliado do PT por sete anos e, ao mesmo tempo, ser aceito por gente identificada com o PSDB. Eduardo Campos pode tirar votos de ambos.
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A um ano da eleição, as pesquisas de intenção de voto valem apenas como indicadores de quanta munição cada um precisará acumular para atacar e se defender. A pesquisa Datafolha feita no final de novembro mostra que a presidente Dilma Rousseff tem 47% das intenções de voto, em comparação com os 19% do senador Aécio Neves (PSDB) e 11% do governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). Apesar de a avaliação do desempenho de Dilma ter piorado após a onda de protestos, os dados mais recentes mostram uma melhora. Os números atuais sugerem que Dilma seria favorita à reeleição se a votação fosse hoje. No cenário atual, ela tem boas chances não apenas de vencer, mas de vencer no primeiro turno – algo que não acontece desde 1998.
O primeiro ponto da estratégia da oposição é criar artifícios para levar a eleição ao segundo turno. Além de Aécio Neves e Eduardo Campos, podem ser candidatos o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e o Pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão (PSC). Randolfe será o candidato mais à esquerda, sem ter a imagem de radical. Pastor da igreja evangélica Assembleia de Deus, Everaldo pode representar parte dos eleitores religiosos mais conservadores, com um discurso contrário a políticas liberais nos costumes, como o casamento gay. Em alguns cenários, Everaldo chega hoje a 5% dos votos. Aécio e Eduardo festejam a concorrência. Os poucos pontos percentuais de Everaldo e Randolfe poderão ser suficientes para evitar que Dilma tenha mais votos que todos os outros candidatos somados. De início, Aécio e Eduardo tendem a caminhar juntos, com o objetivo maior de segurar Dilma.
A oposição deverá atacar principalmente os erros do governo na condução da economia. Aécio e Eduardo já fazem isso em suas conversas e discursos. Em 2013, a inflação só não extrapolou os limites graças a artifícios que gerarão prejuízos futuros, como o sacrifício das contas da Petrobras – a única empresa petrolífera do mundo que dá prejuízo em tempos de barril de petróleo a US$ 100. As contas externas vão mal, a dívida do governo aumentou, e o crescimento está abaixo do esperado. Dilma tem a seu favor, no entanto, um descompasso temporal. Os prejuízos causados à Petrobras ou os malabarismos para iludir as contas públicas só provocarão efeitos na vida dos brasileiros num futuro distante, muito após a eleição. Por enquanto, os brasileiros vivem num país com desemprego baixo, na casa dos 5%. O crédito é relativamente fácil, e o consumo está em alta – cresceu 2,3% no terceiro trimestre, quando o PIB como um todo recuou 0,5%. Como dizer que a economia vai mal, num cenário em que as pessoas não têm problemas para se empregar, compram bens de consumo, e os mais humildes têm benefícios como o Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família? Traduzir os – graves – problemas na gestão da economia brasileira a ponto de convencer os brasileiros é um desafio que até hoje a oposição não conseguiu superar.
Como candidato puramente de oposição, Aécio tentará vencer essa histórica dificuldade. Será bombardeado pela máquina de campanha do PT, com longa experiência em demolir o discurso tucano. O PT se prepara para uma campanha agressiva na internet. Desde os protestos de junho, o ex-ministro Franklin Martins se tornou um integrante das reuniões sobre eleições, que ocorrem periodicamente no Palácio da Alvorada. Além dele, participam do grupo o ex-presidente Lula, o marqueteiro João Santana, o presidente do PT, Rui Falcão, e o ministro da Educação, Aloizio Mercadante. Franklin ofereceu recentemente a Dilma e ao PT um projeto de atuação na internet durante a campanha. A proposta de Franklin não vingou. Mas o PT tem uma equipe atuante e treinada a disputar o pesado embate nas redes sociais. Os tucanos devem apanhar bastante nessa guerrilha, em que tradicionalmente não há muita preocupação com o jogo limpo de nenhum lado. Depois de três campanhas eleitorais vitoriosas, o PT tem um modelo pronto para derrotar tucanos. Massifica a imagem do adversário como inimigo dos pobres, faz comparações (muitas vezes tortas) com os números dos governos FHC, critica as privatizações (apesar de ter privatizado também) e levanta antigos casos de corrupção dos tucanos para relativizar os seus, mais recentes. Deu certo em 2002, 2006 e 2010.
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O problema do PT é não ter uma bomba semelhante para explodir Campos. Ex-aliado que cresceu, em parte, graças a obras tocadas com o apoio de Lula e Dilma, ele é odiado por parte do PT desde que decidiu sair da aliança governista para ser candidato. Os petistas não aceitam sua decisão. Num evento recente, uma faixa o chamava de “traidor do PT, traidor do Brasil”. À parte o exagero do adjetivo e a mistura inadequada entre interesses do PT com interesses do Brasil, a faixa demonstra o tamanho do ódio contra Campos entre os petistas. Por enquanto, ele se apresenta como candidato anfíbio, que critica o que deu errado e pega carona no que deu certo no governo. Tem em seu arquivo horas de imagens de elogios de Lula a sua gestão em Pernambuco e preside um partido de centro-esquerda, que defende muito do que o PT defende. Atacar Campos com eficiência é um desafio para o PT em 2014.
Campos terá de desenvolver uma personalidade própria. O discurso de “fazer diferente” é vago demais para conduzir uma campanha. Até agora, sua candidatura é um sucesso entre analistas e na política partidária. Conseguiu tirar do PSDB o apoio do PPS e, em alguns Estados, é capaz de tirar o PMDB do lado do PT. Campos faz sucesso também em conversas privadas com empresários – categoria que anda descontente com Dilma. No início do ano, com senso de oportunidade, ele foi à rua conversar com esses donos do dinheiro. Visitou os principais banqueiros, empreiteiros e empresários de setores relevantes. Suas críticas ao modelo da gestão Dilma soaram bem para os interlocutores. Tão bem que o governo atribui a ele o recrudescimento do mau humor dos empresários com o Planalto, ali pelo mês de março. Em 2014, Campos terá de apresentar um discurso de campanha capaz de convencer esse pessoal a trocar de lado – e a não abraçar o PSDB de Aécio.
Campos deixa 2013 como coautor do mais inesperado fato político do ano: a adesão da Rede de Marina Silva a seu PSB. Marina ainda não trouxe mais intenções de voto a ele. Ao contrário. Ela é a única candidata que atualmente passa de 20% nas pesquisas – contra 11% de Campos. No último levantamento feito pelo Datafolha, Marina atinge 26%, quase a soma das intenções de voto de Campos e Aécio. Com ela no páreo, Dilma cai um pouco, para 42%. Marina foi a única política profissional cuja popularidade não sofreu abalos com os protestos de junho. Seu discurso, por vezes incompreensível, de negar os métodos políticos usuais, atraiu apoio das ruas, e sua imagem até melhorou. Campos terá de lidar com uma sombra maior que seu corpo.
Defensores das candidaturas de Aécio e Campos – e até de Marina – se animam com alguns indicadores das pesquisas. Há sinais de desejos de mudança. No levantamento feito pelo Datafolha, no final de novembro, os eleitores foram questionados se as ações do próximo presidente deveriam ser iguais ou diferentes às de Dilma. Em média, 66% das pessoas responderam que queriam ações diferentes. Esse percentual sobe proporcionalmente à escolaridade e à renda. Os mais jovens são os mais ávidos por mudanças. Obviamente, entre os entrevistados que se declaram eleitores do PSDB de Aécio e do PSB de Campos, o índice supera os 80%. Mas 45% dos entrevistados que declaram voto em Dilma querem ações diferentes.
O desejo de mudança leva, em tese, um raio de sol às campanhas de Aécio e Campos. O ano de 2013 foi especialmente difícil para Aécio, o postulante com mais dificuldades até agora. A candidatura de Campos tira parte do apoio que Aécio esperava ter para enfrentar o PT e sua liga, que vai da esquerda a PMDB, PP, PSD e PTB. Campos circulou bem entre empresários usando argumentos que, normalmente, pertencem ao PSDB. Também agregou apoio em partidos tradicionalmente ligados aos tucanos, como PPS, DEM e até o PMDB, em alguns Estados. Aécio tem tomado medidas para agir diferente dos candidatos anteriores do PSDB. Ele firmou uma aliança com o Solidariedade, partido criado pelo deputado Paulo Pereira da Silva e braço político da Força Sindical, o segundo maior conglomerado de sindicatos do país. Pela primeira vez, um candidato tucano terá o apoio do movimento sindical para concorrer com a força histórica do PT nessa área. Aécio também tomou medidas preventivas, como apresentar no Senado um projeto para tornar o programa Bolsa Família um gasto permanente. Em toda eleição os tucanos sofrem com boatos – espalhados por petistas – de que, se vencedores, acabariam com o programa que beneficia cerca de 50 milhões de pessoas.
Em tese, Aécio teria a vantagem de, ao contrário de Campos, ter um partido maior, mais bem estruturado, mais conhecido e com maior apoio de candidatos estaduais fortes. O PSDB governa oito Estados, entre eles São Paulo e Minas, os dois maiores colégios eleitorais do país. Nem sempre é fácil. Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin apoia Aécio e é o favorito na luta por seu quarto mandato. Alckmin, no entanto, enfrenta seu pior momento desde 2001. Foi um dos principais alvos dos protestos de junho. Uma investigação sobre desvios de recursos públicos de quase R$ 1 bilhão em compras do Metrô, ocorridos nas gestões do PSDB, é um flanco aberto para acusações dos adversários. Alckmin terá menos tempo para ajudar Aécio, pois terá de suar a gravata em sua própria campanha. Aécio não pode contar com o ex-governador José Serra. Candidato em 2002 e 2010, Serra não teve a cooperação de Aécio. É mais provável Serra fazer campanha para Campos do que ir à rua em busca de votos para Aécio.
Nas pesquisas, Alckmin tem vantagem sobre seus concorrentes. Mas ele terá de se esquivar de baionetas por todos os lados. O candidato do PT, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ainda tem um dígito nas incipientes pesquisas de intenção de voto. Mas seu colega Fernando Haddad começou na mesma situação e elegeu-se prefeito de São Paulo em 2012. Como Haddad, Padilha deve ser um forte concorrente, pois conta com o empenho do ex-presidente Lula, do PT (por ordem de Lula) e com a chance de fazer propaganda de programas do ministério que conduz. Terá ainda a ajuda do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab (PSD), também candidato a governador. Kassab é como uma versão tucana de Campos. Alcançou o estrelato como aliado do PSDB, abandonou o barco em 2012 e levou parte do apoio. Agora, tem potencial para tirar votos de Alckmin.
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Aécio enfrentará problemas em sua casa. Ex-governador e dono de popularidade recorde em Minas Gerais, ainda não tem um candidato forte para suceder a Antonio Anastasia, que não pode disputar a reeleição. O candidato tucano deve ser o ex-ministro Pimenta da Veiga, afastado da política há algum tempo. Pela primeira vez em muito tempo, o PT terá um concorrente forte no Estado, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Fernando Pimentel (PT). Ex-prefeito de Belo Horizonte, Pimentel tem grande popularidade na cidade, forte base de apoio no Estado e aparece como líder em todas as pesquisas recentes. É a aposta menos arriscada para a disputa.
Há um campo em que tucanos, petistas e socialistas devem manter certa distância. No Rio de Janeiro, o líder por enquanto é o ex-governador Anthony Garotinho (PR), seguido pelo ministro da Pesca, Marcelo Crivella (PRB), e pelo senador Lindberg Farias (PT). Demolido por seguidas denúncias de corrupção e maior vítima política dos protestos de junho, o governador Sérgio Cabral (PMDB) deixará o cargo mais cedo para não atrapalhar a candidatura do vice Luiz Fernando Pezão. Garotinho é uma aposta de risco. Dificilmente conseguirá sustentar a dianteira com os ataques que sofrerá, lembrando os governos dele e de sua mulher, Rosinha Matheus. Aécio e Campos não têm candidatos próprios com força no Estado. O PSDB aposta na possibilidade de candidatura do técnico da seleção masculina de vôlei, Bernardinho. Dilma não fará campanha por Lindberg, para evitar problemas com o PMDB, o PR e o PRB, aliados seus.
Todos os dados usados pelos políticos para nortear suas ações futuras podem ser demolidos. Já foram, no passado recente. No início da noite de 6 de junho, grupos de jovens se reuniram e, aos poucos, fecharam a Avenida Paulista para protestar contra um aumento de 20 centavos no valor da passagem de ônibus em São Paulo. Àquela altura, políticos e marqueteiros discutiam se a economia pioraria, a ponto de afetar a campanha eleitoral de 2014. O protesto em São Paulo evoluiu para o vandalismo, e a polícia colocou os cassetetes para funcionar. Nos dias seguintes, o tumulto organizado pelo pouco conhecido movimento Passe Livre se libertou dos 20 centavos. Muita gente que reclamava do trânsito aderiu às manifestações. Uma semana depois, Dilma passou a ser informada sobre os protestos, que se alastravam por Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Vitória, Belo Horizonte e Brasília, entre muitas outras cidades. Dilma teve de sentar à mesa de sua sala de reuniões com representantes do Passe Livre, todos jovens desconhecidos.
Ninguém esperava que milhares de brasileiros fossem às ruas protestar, xingar políticos e protagonizar atos de vandalismo dignos das ruas de Atenas, num momento ainda de desemprego baixo, crédito fácil e consumo em alta – tidos como sinais de satisfação popular pelos marqueteiros. Os protestos de junho são desses eventos altamente improváveis, de grande impacto e para os quais todos buscam explicações – em geral, equivocadas – depois que aconteceram. O estatístico libanês Nassim Taleb os chama de “cisnes negros”. São acontecimentos de grande magnitude, capazes de mudar a vida de milhões de pessoas – como a quebra da Bolsa de Nova York em 1987 ou os atentados de 11 de setembro de 2001 – e que, sobretudo, escapam às previsões. São provas da pequenez de nosso conhecimento.
Depois do “cisne negro” de junho, os parâmetros mudaram. Os políticos temem o que as ruas podem oferecer em 2014, especialmente durante a Copa do Mundo. Há um ano, o governo federal projetava que o Mundial de seleções seria um momento de apoteose, em que o Brasil apareceria para o mundo graças ao sucesso do evento, e a autoestima dos brasileiros atingiria os píncaros. Hoje, após os protestos durante a Copa das Confederações contra os gastos com estádios, atrasos nas obras e o acidente no estádio Itaquerão, que matou duas pessoas, em São Paulo, a expectativa em Brasília é bem mais modesta. Para o governo, se nada de ruim ocorrer na Copa – como alguma morte num protesto ou um apagão nos transportes –, já estará ótimo. Os meses de junho e julho – com o Mundial e prováveis manifestantes exigindo “padrão Fifa” – serão como um campo minado que o governo e seus adversários terão de atravessar.
Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/01/jogo-de-bguerrab.html