Elas estão mais suscetíveis a ataques, como estupros.
Quando a rua se torna a única casa, a violência contra a mulher toma uma outra e maior proporção. O abandono vem da família e do Estado. Não há apenas um agressor. As possibilidades de encerrar esse ciclo também são menores. O mundo não é seguro para as mulheres e elas sofrem. Nos últimos sete meses — de outubro de 2015 a abril de 2016 —, os principais serviços da rede de apoio do GDF a vítimas do sexo feminino atenderam mais de 9 mil pessoas em situação de violência. O governo não tem o recorte de quantas delas vivem sem teto, mas calcula que seja pelo menos 20% das atendidas. Mulheres que lutam contra as agressões e a solidão dos becos da capital federal.
A vulnerabilidade das ruas escolhe um gênero. “A rua maltrata muito mais as mulheres. A noite é sempre mais difícil. Mas a violência é diária. É um xingamento, um cuspe, um tapa, um estupro. Isso marca demais, nós, mulheres”, declara a nordestina Edelzuita Jesus Batista, 53 anos, nascida em Goiânia e criada no Piauí. Filha de um piauiense com uma baiana. A vida era boa com os outros 17 irmãos. Família grande, unida. “Meu pai morreu e, nessa hora, era a mulher quem tinha de batalhar. Corri atrás de trabalho. Tive que parar de estudar”, lembra. Aos 16 anos, uma carona a levou para a capital paulista e, tempo depois, para Brasília.
Aqui, na cidade planejada, dentro do maior parque a céu aberto da América Latina, sofreu uma das piores agressões. “Um estupro. Até hoje, eu guardo comigo, em silêncio. Tamparam minha boca e me arrastaram para o banheiro dos homens. Eles me agrediram, me feriram com faca”, recorda Edelzuita, emocionada. Ela considera que a agressão vinda de homens também em situação de rua, entorpecidos por bebidas ou drogas, é passível de entendimento. “Mas, às vezes, vem da sociedade. Chamam de bicho peçonhento, puta, piranha, vagabunda. Isso não dá para compreender. Quem deveria ajudar agride”, lamenta.
Apoio
Para essas mulheres — vítimas da violência fora do contexto doméstico e, na maioria das vezes, familiar —, não sobram muitas opções de fuga. De ponto de apoio. Elas têm apenas o Estado como referência. Keila Fernanda da Silva, 34, foi parar nas ruas por um caminho tortuoso, o das drogas. Deixou para trás família e boas condições de vida para se aventurar, sem destino, pelo DF. Hoje, está em um acampamento. Vive lá com os três filhos e o marido. “Várias vezes, eu me vi vulnerável, agredida e discriminada só por ser mulher. Sinto isso até na fila do ônibus. Uma vez, ainda grávida, um homem gritou comigo. Ele me xingou e foi preciso uma outra pessoa entrar no meio. Se eu fosse um outro homem, ele não teria feito isso. São várias situações constrangedoras até hoje. Tudo porque eles acham que podem fazer qualquer coisa com a gente”, relata Keila.
Ontem foi dia de esquecer um pouco o sofrimento. Pegar um presente, passar batom, perfume e usar bolsa nova. Keila e outras mulheres em situação de rua e vulnerabilidade participaram do projeto Com que bolsa eu vou? — campanha promovida pelo governo para arrecadar roupas, acessórios e itens de higiene pessoal a fim de distribuí-los a mulheres. Mais de 1,5 mil bolsas foram distribuídas no Centro Pop da Asa Sul, na 903. Teve maquiador, música e cinema, além de lanche.
“Eu me sinto melhor dessa forma. É uma questão de poder, de dar uma força para nós”, avalia Keila. Segundo a subsecretária de Política para as Mulheres, Lucia Bessa, nem que seja por alguns minutos, o empoderamento pode salvar essas pessoas. “As violências para elas, em situação de rua, são as mais diversas e graves possíveis. Elas encaram os serviços (do Estado) como único porto seguro existente”, explica.
Mais riscos
Segundo a ativista e coordenadora do Fórum de Promotoras Legais Populares do DF, Leila Rebouças, as moradoras de rua representam uma camada social extremamente invisível. “A violência contra mulheres nessa situação é ainda pior. Elas são triplamente vitimizadas. Existe todo um contexto de abandono, não só pela família, mas principalmente pelo Estado. Estão em condições frágeis e, por isso, mais sujeitas a diversos tipos de agressão”, opinou, como aponta pesquisa da ActionAid (Veja arte). Para ela, é preciso ter um olhar diferenciado a essa realidade.
“A sociedade e o Estado têm o dever de mudar a cultura de violência de gênero. Falta compromisso com as leis e os pactos já firmados. Se uma mulher for vítima de violência e o próprio delegado criminalizá-la pelo ocorrido, isso acaba vitimizando ainda mais as mulheres. É preciso pensar em medidas de esclarecimento, educação e prevenção para evitar que casos aconteçam. Os equipamentos precisam não só existir, mas também funcionar”, acrescentou.
Fonte: Correio Braziliense