Diz o ditado que a Justiça tarda, mas não falha. Dezessete anos depois, o episódio sangrento que marcou uma das cidades mais carentes do DF, a Estrutural, vai a limpo. Na próxima semana, 11 policias militares suspeitos de envolvimento na morte, ou melhor, no massacre dos moradores da região, em 1998, vão a júri popular.
O tempo não conseguiu apagar o que foi considerado o maior período de tortura e perseguição de uma comunidade local. Pelo contrário, nas ruas estreitas e muitas ainda não asfaltadas da Estrutural, a chacina permanece viva na memória dos que sobreviveram à Operação Tornado.
O julgamento dos policiais militares está marcado para a próxima semana (entre os dias 24 e 28), a partir das 9h. O senador Cristovam Buarque, governador do Distrito Federal na época, não comparecerá à sessão.
Réus
Entre os réus estão Luiz Henrique Fonseca Teixeira, Alexandre Nogueira Martins, Carlos Chagas de Alencar, Rodrigo Moreira de Souza, Wolney Rodrigues da Silva, Antônio da Costa Veloso, Francisco Alves de Lima, Vangelista Pereira de Souza, Cássio Marinho, Marcio Serra Freixo e Eduardo Araújo de Oliveira. Eles serão julgados pelas mortes de Luciano Pires Aquino e Milton de Sá, e tentativa de homicídio de Roberto José dos Reis Filho, conhecido como Azul ou Azulão. O 12º policial, Daniel de Souza Pinto Júnior, que também seria julgado, morreu este ano.
O advogado da comunidade e, em específico, de Roberto José Filho, o Azul, que hoje está protegido pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Ennio Ferreira Bastos explica que o senador Cristovam Buarque poderia escolher local, dia e horário marcado com o Juiz, mas não o fez.
“Como um homem público, ele tinha obrigação de esclarecer os fatos. Além disso, Cristovam Buarque era governador na época e, portanto, o líder. Ele está fugindo desse julgamento”, afirma o advogado Ennio Ferreira.
Memória
No dia 6 de agosto de 1998, durante uma operação da Polícia Militar, o soldado Rubens Gomes de Faria, 32 anos, foi atingido por disparo de arma de fogo e morreu na Estrutural. Dois dias depois, a PM fez operações na área. Segundo o advogado Ennio Ferreira Bastos, a polícia alegou que era uma operação de desarmamento e pela proximidade do lixo, mas a ação também promoveu derrubada de barracos. “Essa operação de desarmamento foi uma desculpa para começar a retirada dos moradores”, afirma Ennio.
Cenário político em 1998
Governador do Distrito Federal em 1998, Cristovam Buarque tinha tudo para se eleger na época. Dono de uma grande popularidade nas cidades satélites, o atual senador, no entanto, perdeu para o candidato Joaquim Roriz no mesmo ano. Naquela altura, as imagens das ações policiais na Estrutural já tinham ganhado força em todo o DF.
Guerra iniciou com mudança dos moradores
Segundo o advogado Ennio Ferreira Bastos, a Operação Tornado começou em agosto de 1998, quando toda a comunidade foi transferida da antiga Estrutural, onde, hoje, é a Cidade do Automóvel, para se instalar no endereço atual. O problema foi quando o governo decidiu, mais uma vez, remover os moradores de lugar.
“Ao transferir a comunidade, o governo assinou um termo de acordo com todo mundo. Portanto, os moradores não podiam ser removidos de novo. Aquela área não era uma invasão, era um assentamento”, ressalta Bastos.
A comunidade não aceitou ser transferida novamente, o que deu início a uma guerra contra a PM e o governo. “Os moradores começaram a ser retirados à força, e as derrubadas eram constantes. Vários foram mortos, e muitos corpos ficaram desaparecidos”, completa.
Nem o tempo apaga
Na época, o cenário era semelhante ao de um campo de concentração nazista, como lembra o advogado. A cidade foi cercada. Ninguém entrava ou saía livremente. Não havia água, luz, telefone, gás. A alimentação era restrita, inclusive, o leite das crianças, como conta um morador. As pessoas não podiam levar móveis ou utensílios de casa, além de serem presas em jaulas. À noite, pedidos de socorro, gritos e tiros eram a trilha sonora.
Memória não esquece o sofrimento
Quase 20 anos depois, o coordenador da cooperativa Sonho de Liberdade, Fernando de Figueredo, 43 anos, morador da cidade desde a fundação, detalha o massacre. Fernando, assim como toda a comunidade, foi obrigado a deixar a antiga Estrutural para o endereço atual, onde a chacina aconteceu.
“Nós fomos enganados desde quando o governo nos transferiu para onde, atualmente, é a Estrutural, alegando que a área da Cidade do Automóvel era de preservação ambiental. Mas, assim que desocupamos, o local foi tomado pelos empresários”, explica Fernando.
Na época, Fernando tinha duas filhas e trabalhava como catador de lixo. Ele lembra a luta pela sobrevivência da sua família e de amigos. “A gente não tinha sossego. Éramos tratados como animais. Toda hora tinha uma derrubada, e os moradores eram expulsos. Vi muitas pessoas serem mortas e torturadas, inclusive, conhecia o Azulão. A única coisa que a gente queria era um barraco para viver”, completa.
O medo, acrescenta o coordenador, era um sentimento compartilhado por todos. No entanto, muitos moradores, mesmo apavorados, enfrentaram a PM. Esse não foi o caso de Fernando. “Eu só não fui torturado porque fugia quando a polícia aparecia. Eu não enfrentava por causa dos meus filhos, mas tive vários amigos que ficaram machucados e perderam os membros com tiros de bala de borracha e bombas de gás. Eles faziam um verdadeiro terrorismo com a gente”, relata.
Ele acrescenta o comportamento da polícia: “Eu nunca vou esquecer quando o major da PM chegou aqui dizendo que ele era acostumado a acabar com favela no Rio de Janeiro e que a Estrutural ia ser fichinha para ele”, lembra.
Quem também guarda na memória os momentos de tensão que viveu em 1998, é Paulo (nome fictício), que preferiu não se identificar depois da crueldade que presenciou na Operação Tornado. “Muita gente foi morta e espancada, mas o pior era a tortura psicológica. Eu saía para trabalhar, mas não sabia se ia encontrar minha esposa grávida e a minha filha de dois anos no fim do expediente”, destaca.
O que diz o senador Cristovam Buarque
Questionado a respeito da Operação Tornado, o senador Cristovam Buarque confirmou que não vai poder comparecer ao julgamento dos policiais.
Ele destacou que espera a decisão da Justiça sobre o caso. “Vamos aguardar o que a Justiça tem a dizer. Quem é culpado tem que pagar pelo o que cometeu”, afirma o senador, alegando que “a Operação Tornado não teve nada a ver com o governo”. Segundo Cristovam, a operação era uma ação “paralela”.
“Um livro de drama”
Paulo (nome fictício), um dos sobreviventes do massacre, afirma que a comunidade aprendeu que não há conquistas sem lutas. “Mesmo sendo um capítulo muito triste, ele faz parte da história da Estrutural. Daria para escrever um livro de drama. Hoje, quando olho para a minha cidade vejo que todo o sofrimento valeu a pena. A comunidade merecia esse julgamento, mas o desfecho não vai apagar nunca o que aconteceu aqui”, garante ele, informando que o cenário começou a melhorar quando Joaquim Roriz assumiu o governo no mesmo ano.
Há 22 anos na Estrutural, o serralheiro Renato de Souza Paula, 54 anos, que também se diz vítima da operação, comenta o julgamento do caso na próxima semana: “A maior justiça é a de Deus. Na minha opinião, o Cristovam também tinha que ser julgado, ele era o mandante. Mesmo assim, o fato de os policiais pagarem pelo que fizeram já é alguma coisa”, afirma Renato, contando as dificuldades que passou.
“Criei meus dois filhos na Estrutural e tenho orgulho disso. Na época do massacre, a gente não tinha direito a nenhum serviço básico, até conta bancária eu fui proibido de abrir”, conclui Renato.
A história de Roberto José dos Reis Filho, o Azul, ganhou repercussão não por acaso. No despacho do processo que levou os réus a júri popular a partir da próxima segunda-feira, uma das passagens detalha que cenas gravadas em uma fita de vídeo mostra o Azul sendo “conduzido por homens à paisana”.
De acordo com o advogado do Azul, Ennio Ferreira Bastos, ele teria sido baleado e depois enterrado ainda vivo. “Ao recuperar os sentidos, o Azul percebeu que tinha sido enterrado e foi socorrido por um caminhoneiro”, acrescenta Ennio Ferreira.
Como funciona o júri popular
O corpo de jurados, selecionado para participar do julgamento dos 11 policiais, é composto por sete pessoas, esclarece o advogado Ennio Ferreira Bastos. De acordo com ele, a lista de jurados é sorteada, anualmente, pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) entre os idôneos e eleitores do DF.
Diante disso, todos os réus serão interrogados. As testemunhas de defesa e acusação também serão ouvidas. Em seguida, haverá debates. Por fim, os sete jurados vão votar a respeito do caso para definir a situação dos militares. “Todo crime contra a vida é julgado pelo Tribunal do Júri, ou seja, quem decide é a sociedade”, completa Ennio.
Saiba mais
Segundo o depoimento de um morador, a praça central da Estrutural, onde, hoje, é uma escola pública, funcionava como ponto de encontro da comunidade para definir as próximas batalhas contra a Polícia Militar.